segunda-feira, 13 de março de 2023

 As memórias são uma parte fundamental de nossa experiência humana. Elas moldam nossas percepções de nós mesmos e do mundo ao nosso redor. No entanto, nem sempre podemos confiar em nossas memórias para nos fornecer uma imagem precisa do passado. Às vezes, as memórias podem ser distorcidas, alteradas ou mesmo completamente fabricadas.

Nos anos 90, houve um aumento alarmante de casos de pessoas que alegavam ter recuperado memórias reprimidas de abusos sexuais na infância. Essas memórias frequentemente envolviam relatos de abuso sexual perpetrado por pais, parentes próximos ou outras figuras de autoridade. Muitas vezes, as memórias foram recuperadas durante sessões de terapia com terapeutas e psicanalistas.

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Um dos principais defensores da prática de recuperação de memória reprimida na década de 90 foi o psiquiatra Lawrence Pazder. Ele escreveu um livro intitulado "Michelle Remembers", que descreveu as supostas memórias reprimidas de abuso sexual em sua paciente Michelle Smith. O livro foi amplamente divulgado e levou a um aumento na popularidade da terapia de recuperação de memória. No entanto, muitos anos depois, o livro foi desacreditado e Pazder foi criticado por sua falta de base científica em suas práticas clínicas..

A psicologa Elizabeth Loftus foi uma das primeiras a investigar e provar cientificamente que as memórias podem ser facilmente distorcidas e manipuladas. Ela realizou uma série de experimentos nos anos 70 e 80, nos quais mostrou que as pessoas podem ser levadas a acreditar em eventos que nunca ocorreram. Loftus também provou que as memórias recuperadas através da terapia psicanalítica eram altamente suscetíveis a distorção e que a técnica podia facilmente criar falsas memórias. Seu trabalho influenciou significativamente a ciência da memória e ajudou a desacreditar a prática de recuperação de memória reprimida.


Na década de 90, a questão das memórias falsas se tornou um tópico de grande interesse na imprensa. Várias reportagens foram publicadas em jornais, revistas e programas de televisão, discutindo o impacto potencialmente devastador das memórias falsas e a prática controversa de recuperação de memória reprimida.

Uma das histórias mais notórias envolvendo memórias falsas na época foi o caso da creche McMartin em Los Angeles, EUA. Em 1983, alegações de abuso sexual foram feitas contra os proprietários da creche por pais preocupados, levando a uma investigação policial de sete anos. No entanto, a investigação não encontrou evidências concretas para apoiar as acusações e, em 1990, todos os acusados foram absolvidos. O caso foi amplamente divulgado pela mídia e muitos argumentaram que as crianças envolvidas no caso haviam sido vítimas de sugestão e pressão para fornecer falsas informações.

Outro caso que ganhou destaque na imprensa foi o de Eileen Franklin-Lipsker, que em 1990 acusou seu pai George Franklin de ter estuprado e assassinado sua amiga de infancia quando ela  tinha 8 anos. Eileen havia supostamente reprimido as memórias do assassinato, mas as recuperou através de sessões de terapia. No entanto, após um julgamento longo e controverso, George Franklin foi absolvido em 1996, e a credibilidade das memórias recuperadas através de terapia psicanalítica foi questionada.

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As técnicas terapêuticas que foram associadas a casos de memórias falsas em torno do abuso infantil incluem a hipnose e a terapia regressiva. Essas técnicas foram amplamente utilizadas por terapeutas na década de 1980 e 1990, especialmente na corrente psicanalítica, para tentar ajudar pacientes que sofriam de transtornos emocionais graves, como ansiedade e depressão.

A partir da década de 1990, muitos psicólogos e terapeutas começaram a se afastar dessas técnicas em favor de abordagens mais baseadas em evidências, como a terapia cognitivo-comportamental. Ainda assim, a psicanálise e outras formas de terapia psicodinâmica continuam sendo amplamente praticadas em todo o mundo, apesar de ter havido um crescente reconhecimento dos riscos associados à recuperação de memórias reprimidas.

É assustador e surpreendente como a terapia de recuperação de memórias e as falsas memórias foram amplamente aceitas nos anos 80 e 90, apesar da completa falta de evidências científicas para apoiá-las. Isso levanta uma série de questões importantes sobre como a sociedade aceita certas ideias sem questionar sua validade e como profissionais da saúde mental podem ser influenciados por crenças populares ou teorias estúpidas. Infelizmente, a falta de rigor científico e o potencial para danos psicológicos em práticas terapêuticas mal fundamentadas não são exclusivos do passado e estão em universidades, artigos cientifícos e por aí vai. Até hoje abordagens psicológicas são promovidas sem uma base sólida em evidências, e alegações de memórias reprimidas e traumas passados ​​são ainda levantadas sem a devida cautela. É importante questionarmos o que nos leva a aceitar certas ideias e práticas reprovadas pelo básico da ciencia, se contiuarmos tendo pressa, continuaremos provocando estragos.

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